sexta-feira, 1 de março de 2013

Ao nosso redor

          A segurança dos prédios


Uma sensação de tensão tomou conta do meu corpo depois da sessão de O Som ao Redor: em frente ao Conjunto Nacional, uma banca de revistas me serviu de refúgio quando desconfiei da moradora de rua que vinha em minha direção, gritando. O filme de Kleber Mendonça Filho faz o espectador sentir medo da própria sombra, e também da dinâmica social brasileira. Por isso, gostaria que esse fosse um post colaborativo – para que os leitores acrescentassem ao texto também as reflexões e conclusões a que chegaram depois de assistir a esse filme que traduz tão bem o Brasil do presente. Começo com minhas considerações, relatadas aqui depois das conversas com a Isa e a Dé, que me acompanharam no cinema, e com o Ivan, que sentou comigo para refletir sobre o assunto (mais uma vez).


                                           ***

A cena de abertura mostra crianças, adolescentes e empregadas no andar térreo de um prédio. Enjaulados, este é o lugar onde todos podem brincar com “segurança”. É nisso que os condomínios residenciais de classe média (todas elas) se transformaram: refúgio de quem prefere se esconder a se misturar, perpetuando a dinâmica da diferenciação de classes – “eu sou melhor do que você, por isso posso me proteger aqui dentro enquanto você passa frio e fome do lado de fora, seja você (e eu) quem for”. Em segundo plano, um operário solda novas grades no prédio ao fundo, que provavelmente irão compor outras prisões seguras.

Entre garrafas vazias e cinzeiros cheios, João (o herdeiro) acorda na sala de seu apartamento ao lado de Sofia. Ambos estão nus e são acordados pela chegada da empregada – há anos na família  que nesse dia levou duas crianças, suas netas, para o trabalho. O jovem patrão corre de mãos dadas com a nova amiga para o quarto, tentando em vão evitar que eles tenham as bundas vistas. Há privacidade possível no mundo brasileiro de patrões e domésticas?

João é corretor de seguros e aparece em uma cena tentando vender um apartamento de um dos prédios da família. A interessada está acompanhada da filha e, após “apreciar” a vista entupida de prédios, pergunta se pode ganhar um desconto, já que recentemente uma menina se suicidou ali. Sua cliente diz sentir uma “energia ruim” no lugar. Assim como todo bom brasileiro, ela tem algum pressentimento/sensação energética sobre o que aconteceu, mas um desconto amigo poderia desanuviar o ambiente.

Bia é a mãe da família que de longe parece perfeita: casada com um homem aparentemente bem-sucedido, ela tem dois filhos adolescentes bonitos e saudáveis que fazem aulas particulares de inglês e chinês (afinal eles serão competidores no futuro), e mora em um bairro de classe média do Recife. No entanto, não suporta a própria vida, a ponto de transformar o cachorro do vizinho em principal inimigo – ela não aguenta ouvir seus latidos, mas parece que, na verdade, o problema é outro: ver a vida passar trancafiada em seu apartamento. O alívio vem com a ‘massa’ encomendada de um falso entregador de filtros d’água, que ela fuma em uma cena poética, em que um aspirador de pó é seu cúmplice. Suas crises, aliás, têm como únicas testemunhas os eletrodomésticos: ela é atacada pela vizinha que inveja sua vida miserável quando recebe em casa uma TV de tela plana com muitas polegadas e se apoia na máquina de lavar durante a centrifugação para se masturbar.

Numa tarde, João se depara com o marido de sua empregada deitado em seu sofá. Por todo o filme, a sensação é de que o herdeiro do latifundiário dono daquele bairro é um dos poucos que ainda guardam alguma consciência sobre as injustiças sociais veladas e descaradas que acontecem diariamente à sua volta. Mas a reação dele diante daquele trabalhador negro estirado confortavelmente em sua sala não engana – João pergunta se o homem sabia o que o avô dele costumava fazer com os empregados preguiçosos, no que ele próprio responde: “meu avô os chacoalhava assim, ó”, pegando-o pelos ombros e dando-lhe um chacoalhão. Fica então claro que também João se encaixa perfeitamente na dinâmica da herança escravocrata que o Brasil gosta de guardar.

A reunião de condomínio que acontece no andar térreo do prédio de João é um clássico da classe média brasileira. A principal discussão em pauta: demitir ou não um porteiro que há mais de uma década trabalha ali, sob o argumento de que ele já não estaria cumprindo suas tarefas como deveria. Surge então um adolescente também morador do prédio em questão com seu laptop moderno exibindo um vídeo que mostra o porteiro dormindo durante o expediente. Por seu esforço em delatar o trabalhador, o menino é premiado com elogios. João mostra ao espectador sensibilidade em relação ao caso, e sugere que não o demitam por justa causa; desse modo, ele não deixaria o lugar para onde dedicou parte da vida com uma mão na frente e outra atrás. Mas logo depois de opinar, João abandona a reunião antes mesmo da eleição que decidiria sobre o futuro do Zé. Foda-se.

Na cena final do filme, todos os herdeiros do latifundiário dono do bairro se reúnem no salão de festas do prédio onde vive o patriarca para celebrar o aniversário de uma menina, membro da família. Aglomerados na sala, entoam juntos uma canção que, parece, é tradição entre eles. Estão claramente entediados: cantam como se percorressem o caminho da morte – o que mais tarde se revela verdade, supondo que o avô, prestes a ser assassinado, é o símbolo que representa aquela família. Ninguém ali suporta tal tradição, nem mesmo o latifundiário que criou a própria dinâmica familiar, fato que ele confessa na sala de seu apartamento aos seguranças que o convidam para ter com ele uma conversa particular. Ninguém suporta cantar, mas todos cantam. Ninguém suporta a própria vida, mas seguem vivendo. Como mortos-vivos.


         A segurança dos presídios





3 comentários:

  1. CA RA LHO. Vc é foda, Ju. Me dá até raiva por não escrever mais (aqui. só aqui).

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  2. muito bom, Ju!! adorei!!! me identifiquei muito com essa coisa meio culpa da classe média em relacao aos empregados domesticas (no meu caso, com faxineiras, diaristas).

    Aahh o Brasil tem muito essas relações esquisitas entre as classes. quero sumir!! hahaha

    bjokas

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  3. Jujuba, o texto é ótimo, muito claro! Mas como você bem sabe, não vi o filme. Agora, o assunto é tão grande, que me sinto incompleta aqui se deixar só o que penso numa abordagem "violência, educação, classes, filme". Quero dizer o que penso, ouvir o que você pensa, falar de novo o que acho, bater com o que você sente. Vai ter de ser por skype, nega! O resto é o que a gente já sabe, sempre soube, As relações são ruins, o pensamento é equivocado e a desigualdade social é mesmo o maior problema do nosso lindo país. O medo alimenta uma série de atitudes ruins e as consequências são piores ainda. Acho que cercar tudo tá completamente fora questão. Ocupar seria muito melhor. Mas há de se levar em conta o medo. Se isso bate na gente, que mesmo livre se pega no susto, imagine que a coisa dobra quando o assunto é mãe e pai querendo proteger o filho, por exemplo. Minha chefe voltava pra casa com os três filhos no carro (blindado) quando dispararam mais de cinco tiros neles. E aí, como faz? Muito medo, né? Mas antes de sentir raiva, também é preciso voltar no tempo, reconstruir a história, entender a formação do país e, principalmente, torcer pra que um dia todo mundo possa ter as mesmas oportunidades. Poutz, falei um monte, ave. Beijitos!

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