quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Não meta a colher

Fazia algum tempo, a tela do Word estava em branco no meu computador. No dia 5 de novembro de 2012, eu esperava, sozinha em casa, um sinal dos céus para que conseguisse, finalmente, começar a escrever uma reportagem sobre violência psicológica entre casais, que eu deveria entregar em algumas horas. O dia ensolarado e sem vento passava devagar, como se nada estivesse acontecendo no prédio, no bairro, em nenhum lugar da cidade. Eu mudei o computador de lugar, da sala pro quintal, em busca de inspiração. Aquela enrolação toda já começava a me dar sono quando eu ouvi o primeiro grito.

-VOCÊ É UMA VAGABUNDA QUE NÃO TÁ NEM AÍ. SÓ QUER SABER DELA (assim, caixa alta).

Prendi a respiração por uns dez segundos. Por susto, mas confesso que foi principalmente a curiosidade sobre a vida alheia que me fez ficar estática, como se de repente eu tivesse me tornado uma testemunha que ninguém pudesse ver no local do crime. Eu não estava na casa da vizinha, de onde vinha o barulho, mas é a vizinha do lado, e os gritos eram claros como se ela morasse aqui dentro.

Desde que me mudei pra esse apê, ouço a mulher gritar com a filha de uns 8 anos, a mãe dela gritar com ela e o cachorro gritar com todo mundo. Eu sempre tento entrar em casa do jeito mais suave possível, porque o cachorro também grita quando ouve o barulho da minha chave na fechadura, e aí alguém grita com ele, etc. Então comentei alguma coisa com o Ivan um dia, que me contou que a tal mulher mora com a mãe e a filha dela e sempre aparece com um cara novo que vem morar aqui com elas. Quando ele me contou isso, confesso que achei estranho. Uma mulher com uma filha pequena que traz os caras com quem namora pra morar com elas e a sogra? Uma mulher que ouve insultos como "vagabunda" e continua permitindo que o cara divida o mesmo teto com ela? Estranho.

-VOCÊ TÁ FALANDO DA MINHA FILHA? O QUE VOCÊ TÁ FALANDO DA MINHA FILHA, SEU FILHO DA PUTA

Sim, os gritos continuaram. Enquanto ouvia, eu sentia tremer meus dedos. Estava angustiada e ansiosa, e cada vez mais curiosa. Queria saber o que estava acontecendo, por que eles estavam brigando, como seria o desfecho da briga. Quando eu dei por mim, estava em pé em frente a porta da sala, lendo o jornal com um olho enquanto o outro esperava qualquer movimentação. Sim, eu estava à espreita, a três centímetros do olho mágico.

-EU VOU EMBORA DAQUI, OLHA QUE EU VOU EMBORA (imagina double caps lock)

"Ele já vai tarde", pensei. E juro que tive vontade de sair de casa naquela hora. Sabe, pegar a sacola ecológica do mercado e fazer a fina que não ouviu nada? Mas eu nunca faria isso, claro, porque já sei que situações de risco me dão crise de riso e, no limite, ataques de gargalhada (quem conhece sabe que é alta) e até incontinência urinária (sim, faço xixi nas calças quando não consigo parar de rir). Então, levando em conta essa possibilidade, eu resolvi continuar atrás da porta, como se estivesse usando roupas camufladas de exército esperando o inimigo escondida na moita.

-EU QUERO QUE VOCÊ VÁ EMBORA! VAI, VAI.

Ela tirou as palavras - os gritos - da minha boca. A cena que se seguiu foi mais rápida: em menos de cinco segundos, eu, parada atrás da porta, curiosíssima, dei um passo pra trás quando ele, furioso, saiu batendo a porta com uma força de vendaval.

"Preciso de um copo de água" e "Isso é melhor do que a cena de ação do filme mais foda" passaram pela minha cabeça na hora.

Era como se, com a briga dos vizinhos, todas as entrevistas que eu fiz - todas as conversas emocionantes com meninas que foram enganadas e machucadas verbalmente por seus companheiros - tivessem virado realidade por um instante. E a adrenalina que substituiu o marasmo intelectual parecia uma solução involuntária instantânea. Mas eu estava nervosa demais pra escrever. Depois que ele saiu, ela continuou berrando e chorando, e eu fiquei completamente aflita, me senti desamparada. A ponto de ligar pra Isa, que por coincidência estava almoçando perto de casa e topou me acompanhar no meu almoço. O Ivan também quis ir.

Na mesa da Merça, a gente conversou sobre várias coisas da vida, e a Isa falou sobre como ela achava raro  ver um casal feliz de verdade que nem a gente, ou que a gente era o casal mais feliz que ela conhecia, ou alguma coisa assim. Normal, porque a Isa é sempre exagerada! Mas nessa hora eu quis falar alguma coisa, dar um contraponto, sei lá. Eu sentia que não era real, mas não consegui falar nada.

Acho que até comentei com a Isa sobre a briga dos vizinhos, mas depois esqueci dela, e tentei focar no meu texto, que não saía. Voltamos do almoço às 16h, e nada de inspiração (eu levo a sério demais esse negócio de inspiração, que preguiça). Quase 17h e o Ivan, em seu primeiro dia de férias, disse que precisava fazer sei lá o que no jornal. "Vai lá, vai lá." Na hora não estranhei o fato de que ele estava de férias e estava indo pro trabalho.

Fiquei em casa sozinha, relendo os relatos de mulheres que tinham sido traídas, xingadas, humilhadas, etc. 

Cinco horas depois, o Ivan voltou e eu não tinha nem começado o lide. Que inferno. Então recusei o convite pra tomar uma cerveja com os amigos dele e fiquei em casa, sofrendo sozinha sem conseguir escrever e pensando em todas aquelas brigas. "Por que as mulheres que passam por esse tipo de coisa não conseguem sair dessa situação? É tão óbvio que essas relações são destrutivas! E por que raios esses homens não vão viver as vidas deles tranquilamente, sem ter que enganar e nem xingar ninguém de gorda e vagabunda? Get a life!". Eu ficava pensando em como eu não poderia retratar essas meninas como vítimas, porque elas, de alguma maneira, queriam viver aquela situação. Um pouco como a nossa vizinha, que vive aos berros com o namorado dela, mas fora de casa eles estão sempre de mãos dadas com a menininha, filha dela, na melhor imagem da família feliz. "Por quê? Por quê? Por quê???????"

Decidi avisar o Ivan que não ia no bar. Pensar tanto não tinha me feito bem e eu comecei a me sentir febril. Tomei um resfenol (que eu nem sei se é pra isso mesmo) e fui deitar. 

-O QUE É ISSO, SEU FILHO DA PUTA, SEU NOJENTO?????? VAI TOMAR NO MEIO DO SEU CU, SEU CANALHA DE MERDA, COVARDE, NOJENTO. 

Duas horas depois, mais gritos. Gritos, GRITOS. Mas, dessa vez, eles vinham de dentro do meu quarto.



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