domingo, 28 de março de 2010

Madadayo



Na escuridão da sala da Cinemateca, eu e o meu avô éramos os únicos a cochichar antes do início da sessão de Madadayo.

-Pronto, vô! Nem começou e já acabou, vamo embora!! - Foi a minha reação para um problema no início da projeção.

Só que, para cochichar com ele, se há de gritar...

-EEEEEEIN????

...E repetir até que ele entenda e ria da piada, mesmo que já não tenha mais graça (já não tinha mesmo).

De risinho com ele ali, esperando o filme começar, eu obviamente não imaginava que estava prestes a considerar, pela primeira vez, o fato de que meu avô um dia também vai estar pronto.

Madadayo, ao contrário do que eu pensava antes de ler a sinopse mais profunda que a wikipédia pode oferecer, não tem a ver com samurais. Não tem ação, castelo, nem nada que possa ser facilmente relacionado a um filme dirigido por Akira Kurosawa - mesmo por quem nunca viu nenhum (como eu) e aproveitou os cem anos que ele faria se estivesse vivo para conhecer seu trabalho. Por isso, a última coisa que eu esperava quando entrei na sala de cinema era sair de lá emocionada por conseguir, finalmente, enxergar alguma beleza na morte.

***

Eu, meu irmão e o vô estendemos o cafezinho e o funcionário da Cinemateca teve que vir até a nossa mesa para avisar que a sessão começaria em alguns instantes. Mesmo sabendo que meus pais já estavam lá dentro guardando três bons lugares, eu fiquei agitada e, sem perceber, apertei o passo. O Fernando me fitou com um olhar de reprovação e, com a mão, fez um gesto de "mais devagar". A cena antecipou para mim um sentimento que o filme tornaria claro, mas em que eu e a maioria das pessoas não gosta nem de pensar. Naquela hora, por uns cinco segundos, meus olhos encheram de lágrimas e, apesar dos 92 anos do vô, eu me lembrei que ele um dia também vai ter que responder "Madakai".

Claro que eu sei que todo mundo vai morrer, que temos que encarar a morte de um jeito natural e blá blá blá, mas isso já está programado nas nossas mentes: é mecânico pensar que a morte vai acontecer com todo mundo - o que não torna previsível nossa reação diante dela, seja qual for a circunstância, com uma pessoa querida ou com nós mesmos. Naquele momento, naquela fração de minuto em que eu comecei a andar mais devagar, segurei forte a mão dele e pensei que eu tinha sorte por tê-lo ali.

Passado esse momento, voltei à realidade: lá dentro, meus pais acenavam da penúltima fileira (são poucas nesta sala), com os nossos lugares reservados. Mas o vô, que confirmou, ao entrar no carro, que o óculos estava no bolso da calça, me confidenciou tê-lo esquecido. Por isso ficamos ali mesmo, na primeira fila. Depois o vô achou o óculos, mas já não dava mais, nossos lugares foram tomados. Tudo bem, ficamos ali juntos, de pescoço meio repuxado até o fim da sessão.

Para a minha surpresa, ele não desgrudou os olhos da tela, parecia o moleque de "Cinema Paradiso", fascinado. Quem já assisitiu qualquer coisa mais longa que meia hora comigo sabe que eu sou meio policial do sono e fico na vigia para me certificar de que não estou sozinha - e de que não vai ficar para mim a tarefa de resumir a história (ou desvendá-la sem nenhuma ajuda) mais tarde. Pois nas três vezes que dei uma olhadela de canto para o vô, os olhos dele nem piscavam, tão entretido que estava.

Tudo na história do professor de alemão que se aposentou para se dedicar à literatura se relaciona, de alguma maneira, com a vida do vô: desde a tolerância que aumentou com os anos (antes, o Professor Hyakken Uchida, personagem inspirado em história real, não suportava visitas. Depois, chega a pedir para que os amigos ex-alunos não o deixem) até uma grande perda (que no caso de Uchida é representada por um gato) e o desapego pela vida, no melhor sentido da expressão: os problemas deixam de ser obstáculo para serem encarados como só mais um detalhe imperfeito nos fatos que não gera insegurança ou angústia - o contrário do que acontece com os jovens, ansiosos até por não saber por que estamos ansiosos.

A calma com que o professor insiste em responder "Madadayo" (ainda não!) à provocação "Madakai" (pronto?) de seus antigos alunos é tão supreendente quanto a chegada do fim. Dormindo, ele volta à infância em sonho e descobre que está enfim "pronto", pronto para ser procurado pelos amiguinhos em um jogo de esconde-esconde, quando uma luz vermelha forte surge de maneira psicodélica no céu. As cores que se fundem com o vermelho transformam a paisagem de tal maneira que, de repente, a morte vira sinônimo de calma e felicidade (da sensação de dever cumprido).

***

Para sair, o vô desceu um lance de quatro degraus com bastante dificuldade, ele não enxergava onde terminava o chão para começar a escada.

-Daqui a pouco sou eu! - Ele disse daquele jeito brincalhão.
-Madadayo, vô. Madadayo.