Uma sensação de tensão tomou conta do meu corpo depois da sessão de O Som ao Redor: em frente ao Conjunto Nacional, uma banca de revistas me serviu de refúgio quando desconfiei da moradora de rua que vinha em minha direção, gritando. O filme de Kleber Mendonça Filho faz o espectador sentir medo da própria sombra, e também da dinâmica social brasileira. Por isso, gostaria que esse fosse um post colaborativo – para que os leitores acrescentassem ao texto também as reflexões e conclusões a que chegaram depois de assistir a esse filme que traduz tão bem o Brasil do presente. Começo com minhas considerações, relatadas aqui depois das conversas com a Isa e a Dé, que me acompanharam no cinema, e com o Ivan, que sentou comigo para refletir sobre o assunto (mais uma vez).
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A
cena de abertura mostra crianças, adolescentes e empregadas no andar térreo de
um prédio. Enjaulados, este é o lugar onde todos podem brincar com “segurança”.
É nisso que os condomínios residenciais de classe média (todas elas) se
transformaram: refúgio de quem prefere se esconder a se misturar, perpetuando a
dinâmica da diferenciação de classes – “eu sou melhor do que você, por isso
posso me proteger aqui dentro enquanto você passa frio e fome do lado de fora,
seja você (e eu) quem for”. Em segundo plano, um operário solda novas grades no
prédio ao fundo, que provavelmente irão compor outras prisões seguras.
Entre
garrafas vazias e cinzeiros cheios, João (o herdeiro) acorda na sala de seu
apartamento ao lado de Sofia. Ambos estão nus e
são acordados pela chegada da empregada – há anos na família – que nesse dia
levou duas crianças, suas netas, para o trabalho. O jovem patrão corre de mãos dadas
com a nova amiga para o quarto, tentando em vão evitar que eles tenham as
bundas vistas. Há privacidade possível no mundo brasileiro de patrões e
domésticas?
João
é corretor de seguros e aparece em uma cena tentando vender um apartamento de
um dos prédios da família. A interessada está acompanhada da filha e, após
“apreciar” a vista entupida de prédios, pergunta se pode ganhar um desconto, já
que recentemente uma menina se suicidou ali. Sua cliente diz sentir uma
“energia ruim” no lugar. Assim como todo bom brasileiro, ela tem algum pressentimento/sensação energética sobre o que aconteceu, mas um desconto amigo
poderia desanuviar o ambiente.
Bia
é a mãe da família que de longe parece perfeita: casada com um homem
aparentemente bem-sucedido, ela tem dois filhos adolescentes bonitos e
saudáveis que fazem aulas particulares de inglês e chinês (afinal eles serão
competidores no futuro), e mora em um bairro de classe média do Recife. No
entanto, não suporta a própria vida, a ponto de transformar o cachorro do
vizinho em principal inimigo – ela não aguenta ouvir seus latidos, mas parece
que, na verdade, o problema é outro: ver a vida passar trancafiada em seu apartamento.
O alívio vem com a ‘massa’ encomendada de um falso entregador de filtros
d’água, que ela fuma em uma cena poética, em que um aspirador de pó é seu
cúmplice. Suas crises, aliás, têm como únicas testemunhas os eletrodomésticos:
ela é atacada pela vizinha que inveja sua vida miserável quando recebe em casa
uma TV de tela plana com muitas polegadas e se apoia na máquina de lavar durante
a centrifugação para se masturbar.
Numa
tarde, João se depara com o marido de sua empregada deitado em seu sofá. Por
todo o filme, a sensação é de que o herdeiro do latifundiário dono daquele
bairro é um dos poucos que ainda guardam alguma consciência sobre as injustiças sociais veladas e descaradas que acontecem diariamente à sua volta. Mas a reação dele diante daquele trabalhador negro estirado confortavelmente em sua sala não
engana – João pergunta se o homem sabia o que o avô dele costumava fazer com os
empregados preguiçosos, no que ele próprio responde: “meu avô os chacoalhava
assim, ó”, pegando-o pelos ombros e dando-lhe um chacoalhão. Fica então claro
que também João se encaixa perfeitamente na dinâmica da herança escravocrata
que o Brasil gosta de guardar.
A
reunião de condomínio que acontece no andar térreo do prédio de João é um
clássico da classe média brasileira. A principal discussão em pauta: demitir ou
não um porteiro que há mais de uma década trabalha ali, sob o argumento de que
ele já não estaria cumprindo suas tarefas como deveria. Surge então um adolescente também morador do prédio em questão com seu laptop moderno exibindo um vídeo que
mostra o porteiro dormindo durante o expediente. Por seu esforço em delatar o
trabalhador, o menino é premiado com elogios. João mostra ao espectador sensibilidade
em relação ao caso, e sugere que não o demitam por justa causa; desse modo, ele
não deixaria o lugar para onde dedicou parte da vida com uma mão na frente e
outra atrás. Mas logo depois de opinar, João abandona a reunião antes mesmo da
eleição que decidiria sobre o futuro do Zé. Foda-se.
Na cena final do filme, todos os herdeiros do latifundiário dono do bairro se reúnem no salão de festas do prédio onde vive o patriarca para celebrar o aniversário de uma menina, membro da família. Aglomerados na sala, entoam juntos uma canção que, parece, é tradição entre eles. Estão claramente entediados: cantam como se percorressem o caminho da morte – o que mais tarde se revela verdade, supondo que o avô, prestes a ser assassinado, é o símbolo que representa aquela família. Ninguém ali suporta tal tradição, nem mesmo o latifundiário que criou a própria dinâmica familiar, fato que ele confessa na sala de seu apartamento aos seguranças que o convidam para ter com ele uma conversa particular. Ninguém suporta cantar, mas todos cantam. Ninguém suporta a própria vida, mas seguem vivendo. Como mortos-vivos.
A segurança dos presídios